domingo, 23 de outubro de 2011

Apenas estatística


Passa de meia noite. A luz da varanda do vizinho incomoda um homem que está fumando, deitado no sofá, enquanto a fumaça do cigarro incomoda sua mulher, que está no quarto, deitada na cama, com a porta aberta.

Esse homem era um homem comum, como todos os outros. Classe média baixa, negro, casa própria conquistada com muito suor, morador de favela, sustentava sua mulher, a quem deixara de amar, e ao seu filho, seu único filho. Sua rotina diária era tomar café da manhã, ir trabalhar numa fábrica de calçados, passar as oito piores horas de sua vida por lá, voltar pra casa, ensinar a tarefa de casa para seu filho, jantar, ouvir os resmungos de sua mulher - que reclama por não poder ter uma tv de 49 polegadas pra assistir a novela, por não ter jóias, por não ter roupas caras, pelo marido não ter estudado o suficiente para lhe dar uma vida melhor - levar seu filho para a cama, dá-lhe um beijo de boa noite e dizer que o ama, encher seu copo de pinga e acender seu cigarro paraguaio, deitar no sofá e olhar pro teto, escutando sua mulher resmungar até que ela durma e ele possa fazer o mesmo.
Todos os dias a mesma coisa. Exceto aos domingos.

Aos domingos ele ia pra pelada. Jogar bola com os amigos. Saía de casa às 8 horas da manhã, com seu filho à tiracolo. Camisa surrada do flamengo, meias vermelhas até o joelho. Lá iam eles, pai e filho. Chegando no campinho da cidade, seu filho reunia-se com outras crianças, no cantinho, pra jogar seu futebol mirim. E ele, ia pro campo grande, com seus amigos, agora sonhar em ser como o Wagner Love, seu ídolo. Defendia sua partida de futebol, sempre fazia gols. Ao fim do racha, pegava seu filho, passava numa sorveteria e comprava pro seu filho o sorvete preferido dele, o de pistache.Chegava em casa, e sempre encontrava sua mulher sorrindo. Os domingos a faziam bem. Ela cozinhava aquela feijoada, ao som de Fábio Júnior. Beijava o marido suado, e ia dar um banho de mangueira no filho, enquanto seu esposo tomava banho. Depois almoçavam, juntos. O pequeno ia dormir exausto, e eles aproveitavam a única hora proveitosa da semana para fazerem sexo. E era assim sua vida semanal.

Até que, em uma segunda-feira, saindo para o seu trabalho ele ouve barulhos de tiros. Esconde-se, pra ver o que está acontecendo. É a polícia entrando no morro, pra tentar acabar com o tráfico de drogas. Então, ele vê-se rodeado de traficantes, que nem eram de seu morro, segurando fuzis enormes, daqueles usados em guerras, que dizem: "me dá tua roupa e teu calçado ou eu esfolo teus miolos agora". Então ele, vendo a morte na sua frente, tira sua roupa e entrega ao traficante, que joga o mulambo que está usando e o fuzil para ele e fala "veste isso e pega o fuzil se não tu tá morto, neguinho!". Rodeado de outros traficantes, escondidos na vozinhança ao redor, ele veste o mulambo e obedece a ordem de segurar o fuzil. Hora errada, lugar errado. O sargento do bope passa e o vê, e sem se perguntar dá 4 tiros nesse homem. Uma das vizinhas vê, e liga pra mulher dele contando o acontecido.

Sua mulher desce desesperada com seu filho do lado, abraçando o corpo inerte e ensanguentado do seu ex companheiro. Seu filho, que nunca tinha lidado com a morte, fala: "acorda, papai, você tem que me ensinar a tarefa de casa". A mãe, agora desespera-se pra contar a seu filho que o pai dele não vai poder ensiná-lo a tarefa hoje, nem nunca mais.

Ela ficou viúva, seu filho órfão, e eles ficaram recebendo uma pensão de um salário mínimo do governo, que mal dava pra eles se alimentarem. O traficante fugiu, e continua aumentando o tráfico Brasil afora e adentro. O Sargento não recebeu processo algum, continua trabalhando normalmente, dando tiros a torto e a direita, como se sua profissão fosse um jogo de counter strike, onde ele não sabe quem é o terrorista, quem é o contra terrorista.

E o homem? O homem não tinha nome, sua mulher não tinha nome, seu filho não tinha nome. Eles agora são estatísticas. Mais uma família vítima da falta de controle da Polícia brasileira. Vítimas do Brasil.